OS DISCOS DA VIDA: DORGAS

Quem ouve a música do Dorgas talvez não consiga imaginar o que já passou musicalmente na cabeça de cada integrante. Há um mundo enorme de referências ali – ou de histórias.

O quarteto carioca é estranhamente mal interpretado ainda hoje, depois de dois EPs e uma penca de shows: tratam os quatro como crianças, embora a música deles seja bastante madura e tals. É jazz, é pop, é indie, é Level 42, é tudo isso. Entretanto é também despojamento, não no sentido vil que o termo ganhou com os mauricinhos da vida tentando parecer menos empolados, mas no fato de que a banda é uma diversão pra eles.

Nessa sessão de “Os Discos da Vida”, essas referências e essas histórias aparecem um tanto nas escolhas de cada um. O leitor atento há de se espantar com a enorme mistura e com o bom gosto deles. Crianças? Nada! Você vai se surpreender e entender melhor a ginga, a sagacidade musical e o caminho sonoro que escolheram pra banda.

GABRIEL GUERRA (vocal, teclado e guitarra)

Marvin Gaye – “What’s Going On” (1971)
Eu estaria traindo minha família se não falasse que esse disco é a minha vida. Ouvia enquanto eu estava na barriga da mamãe, ouvia enquanto me formava quando garoto, e até hoje eu escuto quase todo dia. Genial, não existe nada melhor na música do que isso. Marvin já falava de ecologia e aspectos sociais antes de todo mundo. É o album que mostra perfeitamente o porquê ele é uma figura relevante pra todos nós. Os arranjos orquestrais são o fino da beleza, as linhas de James Jamerson estão boladonas (apesar da mais foda, “Inner City Blues”, ser de Bob Babbitt) e Marvin, como sempre, melhor em tudo. Não é à toa que falta um ponto de interrogação no nome do disco, ele tinha certeza do que estava fazendo…

Ouça “What’s Going On”:

DJ Sprinkles – “Midtown 120 Blues” (2008)
O discurso que abre o disco é lindo, Terre Thaemlitz (DJ Sprinkles) esculacha aquilo que ele basicamente viveu a vida inteira durante seus anos de travesti, nas décadas 80 e 90: a house music. E, sim, o disco é um disco de house, que ora vaga entre o deep e às vezes entre um quase-ambient, mas em todo momento você consegue sacar o porquê dele ter se apresentado como DJ Sprinkles e não como Terre Thaemlitz. Jamais um homem como Terre iria, na sua forma mais pura, incluir suas visões abstratas e hiper-idealistas em um disco em que todo o andamento é em 120bpm (segundo ele, é o unico andamento que não te obriga a dançar e nem te tortura a ficar parado), então ele acaba abrindo espaço para seu alter-ego que já estava praticamente abandonado. Em “House Music Is Controllable Desire You Can Own” (e basicamente durante todo o disco) ele pega samples do maior hino da house (“Can You Feel It?”, do Mr. Fingers) e reconstroi, dando um sentido totalmente inverso do ideal de “escapismo” dos clubes e “universalidade” dos amantes do estilo – mesmo assim, sem soar ofensivo em nenhum momento, e sim melancólico e nostalgico. Grande inspiração pra mim no trabalho com o Dorgas. Infelizmente no Brasil ainda existe a mentalidade, principalmente com as pessoas que frequentam os mesmos locais que eu, que música eletrônica é “repetitiva e fria”, o que provavelmente é o argumento mais imbecil que alguem pode dar, e minha resposta é sempre esse disco. Música eletrônica não fica mais emocional que isso.

Ouça “Sisters, I Don’t Know What This World Is Coming To”:

Sylvia Robinson – “Pillow Talk” (1973)
Sexo, puro sexo. A voz dela é como se eu realmente estivesse na cama com ela, e o disco inteiro constroi não pro final do album e sim para a oitava canção, uma versão do classico “Not On The Outside”, onde ela dedica a faixa pra um ex-amante falecido, e a faixa procede pra uma jam gostosa. Eu juro pra você que qualquer significado sobre a palavra “intimidade” muda depois de se ouvir esse disco. Engraçado o suficiente saber que este petardo foi um fracasso de vendas e que a faixa original foi composta para o Al Green cantar, e ele recusou (que imbecil). Anos depois, Sylvia iria ressurgir sendo a produtora executiva da Sugar Hill Records, famosa gravadora que despontou Grandmaster Flash entre outros. Uma mulher a frente dos seus tempos, não?

Ouça “Pillow Talk”:

Bebel Gilberto – “Tanto Tempo” (2000)
Para você ter uma noção da minha idade, este foi meu primeiro contato que eu me lembre com um disco brasileiro (digo “disco”, não “música”). Eu tinha 8 anos. E não sei se sabe, mas houve uma época, no final dos anos 90 e inicio dos anos 00, que o bairro e a praia do Leblon eram provavelmente o lugar mais “cool” do mundo, onde tudo acontecia e onde grande parte da novela “Laços de Família” era gravada. Esse disco é uma memória desses tempos, pois não sei porque ora bolas era o único disco que minha mãe tinha no carro. Aonde quer que ela me levava eu criava expectativas de o quão tranquila e bacana e moderna era minha cidade, e como eu realmente queria aproveitar aquilo tudo (coisa que eu viria a me arrepender anos depois). O disco em si não é nenhuma obra-prima, mas a excelente produção do Suba (que por sinal ia ser a sua última antes do tragico incêndio que levou à sua morte) pode ser dita como os primórdios daquilo que ia ser mal interpretado pelo terrível estilo denominado como drum’n’bossa; e a voz de Bebel finalmente conseguiu abrir um espaço pra ela fugir da sombra do pai. Observação: sempre achei a versão de “Bananeira” desse disco muito melhor que a original do João Donato, e olha que fazer algo melhor que João Donato é tipo… impossível.

Ouça “August Day Song”:

Theo Parrish – “First Floor” (1998)
Disco que provavelmente me fez lembrar que qualquer tipo de arte é produto de limitações, e provavelmente uma aulinha pras pessoas que fazem essas musicas super quantizadas e perfeitas para o “grid do ProTools” hoje em dia. Se Terre destruiu a house, Theo emancipou-a: os sons que tu ouve aqui parecem que saíram da sala do Theo e às vezes os samples soam fora do lugar, mas vale lembrar que estamos falando de um homem negro dos subúrbios de Detroit, então obviamente isso dá todo um novo contexto para aquilo que ele estava fazendo. Era uma época em que as raves já tinham perdido sua graça há muito tempo e a música pop vivia o seu esplendor (com as boybands etc.), então basicamente não havia o compromisso de nenhum artista dito “underground” fazer um disco que não correspondesse às suas próprias expectativas. Eu não sei quantas vezes eu já corri na praia em final de tarde/inicio da noite ouvindo esse disco, não há trilha sonora melhor.

Ouça “Sweet Sticky”:

EDUARDO VERDEJA (guitarra)

Sonic Youth – “Daydream Nation” (1988)
Lembro claramente de conhecer música a música, cheio de pirralhice, inocência e muito amor. “Candle” é, com certeza, uma música eterna pra mim.

Ouça “Candle”:

Battles – “Mirrored” (2007)
Abobalhado pelas convenções absurdas e pela fritação dessa galeria de timbres, comecei meu complicado relacionamento “vai-e-vem” com drogas pesadas. Brincadeiras à parte, um ótimo álbum, que realmente abriu minha cabeça.

Ouça: “Atlas”:

The Jimi Hendrix Experience – “Axis: Bold As Love” (1967)
Foi aqui, e nos outros álbuns desse titã, que aprendi a tocar guitarra e a realmente a curtir musica. Até hoje escuto e fico cantando alto pra cacete no ônibus, amarradão.

Ouça “If Six Was Nine”:

Steely Dan – “Can’t Buy A Thrill” (1972)
O Steely Dan é uma banda que tem um talento exímio para escrever músicas. Músicas concretas, consolidadas, e não somente uma junção de ótimas linhas de guitarra/teclado/baixo/bateria, sobrepostos por uma melodia boa. Escolhi esse álbum especificamente porque tenho memórias muito boas ouvindo-o, andando pra baixo e pra cima, felizão.

Ouça “Do It Again”:

Fela Kuti – “Zombie” (1977)
Foi, provavelmente, o álbum que me iniciou no jazz. Como o próprio Fela, esse álbum dispensa comentários, além do que eu acabei de falar.

Ouça “Zombie”:

LUCAS FREIRE (bateria)

Bob Marley – “Catch a Fire” (1973)
Muito suingue e muita simpatia… Eu demorei pra entender a pegada dessa galera. Eu não gostava de reggae, mas resolvi dar uma chance ao Bob e não me arrependi. Esse disco sempre faz eu me sentir na praia, ou de férias. É pra mim música pra estar feliz. Ele conseguiu, com uma sagacidade humilde, o que é pra mim o melhor que uma música pode dar: clima.

Ouça “Stop The Train”:

Miles Davis – “Bitches Brew” (1970)
No dia em que eu me propus a ouvir o álbum todo, no final eu tava imerso naquela piscina de notas e toques e silêncios e sussurros, e eu quis nadar nela todos os dias. Foi tipo uma flutuação, e fiquei muito tempo tentando captar o que acontecia ali. Todo aquele jazz amorfo flertando com o funk, com uma onda loose 70’s, não sai da minha cabeça, e conseguiu em pouco tempo mudar (ou criar) caminhos a respeito da forma como eu penso a música e a sensação de ouvi-la.

Ouça “Bitches Brew” (trecho):

Fela Kuti – “Zombie” (1977)
Não só “Zombie”, o afrobeat no geral mudou muito a minha cabeça. A mistura de elementos, num embalo de inflamar povão, foi simplesmente uma jogada de mestre. Fela está entre os grandes
heróis, e não só pela música. Acho um disco fundamental, que abriu muito meus conceitos e me apresentou uma onda muito contagiosa e hipnótica. São reis!

Ouça “Mister Follow Follow”:

Madvillain – “Madvillainy” (2004)
Eu gosto muito de pouquíssimos artistas de rap. É algo bem concentrado. Esse disco é um dos meus preferidos do gênero, o disco que me levou a prestar mais atenção nesse tipo de música, a ver mais potencial nele. A voz, as rimas e as bases e samples desse disco me fascinam sempre, é o album de rap mais sagaz que eu já ouvi, com referências muito bem pinçadas.

Ouça “Raid”:

Tortoise – “TNT” (1998)
Esse disco foi me levando com as melodias suaves dele, com as levadas agradáveis, alternando entre o simples e o rebuscado. Foi um tipo de som bem novo pra mim na época em que conheci, e passei muito tempo ouvindo, curtindo, pensando esse disco, achando tudo tranqüilizante e inquietante. Foi a dualidade dessas sensações que me prendeu.

Ouça: “TNT”:

CASSIUS AUGUSTO (baixo, teclado e vocal)

Red House Painters – “Songs For A Blue Guitar” (1996)
Este disco me acertou em cheio. A voz do Mark Kozelek ecoa por cima da instrumentação relativamente simplória, desprovida de emoção, porém, densa e comovente. Quando escutei “Songs For A Blue Guitar”, senti falta de coisas que nunca nem tive, como escutar o programa de rádio de Casey Kasem na infância (letra de “Have You Forgotten”). O álbum é extremamente nostálgico, muitas vezes melancólico, e faz você saber como seria ser uma criança do meio-oeste americano, no final dos anos 70. Em “Song For A Blue Guitar”, os dois primeiros versos, “When everything we felt failed/and some music soft in distance sails”, são devastadores, e pela forma como são cantados e com o resto da música, é impossível não saber que o desastre é iminente. “Revelation Big Sur” é uma das melhores canções que já ouvi. Escute-a em um domingo nublado, e tente não se sentir comovido.

Ouça “Song For A Blue Guitar”:

The Cure – “Faith” (1981)
O The Cure e os Smashing Pumpkins foram no início da minha adolescência o que o Nirvana era pra maioria dos garotos da minha sala. A razão pela qual escolho citar o Cure, e não os Pumpkins (apesar de ambas a bandas terem se tornado relativamente medíocres com o passar do tempo) é que ao escutar um disco deles hoje, consigo entender muito mais a razão pela qual eu adorava tanto a banda. O “Faith” foi o álbum onde o Robert Smith conseguiu encontrar o seu estilo de cantar, ainda traz um pouco do Cure antigo (“Primary”, “Doubt”), mas aponta a direção em que o Cure iria seguir nos próximos lançamentos. O baixo de Simon Gallup é forte, marcado e bem presente, e me levou a querer comprar um instrumento igual ao dele algum dia. “Funeral Party” é uma minhas canções favoritas da banda, e a edição especial desse disco tem “Charlotte Sometimes”, meu single favorito do Cure. Foi uma ótima fase do Smith, em que ele cantava algo que realmente parecia que estava sentindo, e não emulando uma sensação de anos atrás, o que viria acontecer nos discos futuros.

Ouça “The Funeral Party”:

The Temptations – “Cloud Nine” (1969)
Uma das coisas boas que a minha família escutava era Temptations. Quando era pequeno, escutava nas viagens que a gente fazia pro interior do Rio algumas pérolas como “My Girl”, “Papa Was A Rollin’ Stone” e “Just My Imagination”. Neste disco, o grupo saiu um pouco do padrão de balada romântica que eles estavam acostumados, e entrou em um terreno mais dançante e grooveado. O jeito como as vozes se completam é extremamente preciso e melódico, e sempre que era a vez do Eddie Kendricks cantar, eu entendia cada vez mais que ninguém conseguia fazer daquele jeito, com aquela emoção. O disco trouxe mais alguns hits para a banda (“Cloud Nine”, “Runaway Child, Running Wild”) e belas versões para “I Heard It Through The Grapevine” e “Hey Girl”. Este disco segmentou o Temptations como um dos meus grupos favoritos da época, junto com o The Miracles, outro companheiro das viagens de família. Meu pai tinha um puta bom gosto…

Ouça “Cloud Nine”:

Shankar-Jakishan – “Bombay Talkie Soundtrack” (1970)
Uma história de amor conturbada na Índia, produzido pela Merchant-Ivory (assim como a maioria dos filmes indianos no final dos anos 70/início dos 80), com a indústria cinematográfica como pano de fundo, uma espécie de “La Nuit Américaine” do Oriente. E a trilha sonora é de um bom gosto indescrítivel, é necessário ouvir para entender. Composta por Shankar e Jaikishan, dupla famosa por suas canções feitas exclusivamente para filmes de Bollywood. Eles atingiram o seu ápice nessa película, com peças absurdamente pegajosas como o tema central (“Bombay Talkie”), “Hari Om Sat Tat” e o grande hit do filme, “Typewriter Tip Tip Tip”. Músicas memoráveis, feitas para um filme não tão memorável assim. Atenção especial pra canção tema. Algum dia, antes do Dorgas entrar no palco, gostaria que essa música tocasse pra preparar o público. É uma das melhores coisas que já ouvi na minha vida.

Ouça “Bombay Talkie”:

Cyro Monteiro – “A Bossa de Sempre” (1966)
A primeira música que me lembro ter escutado na minha vida foi a minha avó cantando “Se Acaso Você Chegasse” enquanto fazia um bolo. Esse disco é provavelmente o mais importante da minha vida, e foi um dos primeiros que escutei. Cyro era o malandro dos malandros, e toda a malemolência dele está registrada nesse disco. Tem canções românticas, como “Rosinha” (com o grande Silvio Caldas) e “Beija-me”, e umas composições mais sagazes como “Oh, Oscar!”. Mesmo não sendo um compositor nato, a interpretação que Cyro dava pra cada canção era genial. Um gingado e uma leveza com uma certa inocência que era natural da época. Sem dúvida, junto com Dick Farney, um dos maiores intérpretes dos anos dourados da rádio.

Ouça: “Se Acaso Você Chegasse”:

Na próxima edição de “Os Discos da Vida”, Loomer.

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Hominis Canidae”.

Leia mais:

Comentários

comentários

7 comentários

  1. wow, eu realmente não concordo com as coisas que eu falei aqui sobre os discos, pensamentos mudam em um ano… QUERIA FAZER UM UPDATE haha

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.