OS DISCOS DA VIDA: ALEX ANTUNES

Essa edição de “Os Discos da Vida” nasceu de uma maneira curiosa. Na comunidade da Bizz no Facebook, em meio às discussões e análises sobre a edição com a Sinewave, teve essa declaração de Alex Antunes sobre as escolhas de discos que “mudaram a vida” (e que estava apontada não só pra dupla da Sinewave): “não pode ser honesto, porra. tem que reescrever o roteiro da própria história um pouco, segundo as linhas de coerência, como ensina Bob Dylan”. A bola ficou quicando: fiz o convite pra participar – e Alex Antunes aceitou de pronto. Assim, criou-se (a minha) expectativa, que acabou reverberando entre muitos dos meus conhecidos, quando falei sobre.

É compreensível e, no meu caso, explicável. Alex Antunes era um dos caras que eu e meu irmão mais gostávamos de ler na Bizz “original”, aquela que nos guiava musicalmente no final da década de 1980. E tinha o lance do Akira S & As Garotas Que Erraram, que a gente gostava de achar uma das melhores bandas mais legais pra se gostar e se falar que gosta (pra quem não liga o nome à música, e infelizmente tem um bocado de gente hoje em dia que não sabe quem é, o Akira S fez essa maravilha, naquele “Não São Paulo”, da Baratos Afins, de 1985).

Em resumo, é uma honra tê-lo aqui no Floga-se.

A participação é breve, mas importante. Editando o post, sublinhou-se em mim a obviedade de que há um abismo de conhecimento entre aqueles escribas da Bizz que admirava/admiro e meu próprio conhecimento e embasamento musical. Cada explicação aqui do senhor Antunes é uma aula, um parágrafo enciclopédico sobre o disco escolhido. Vale a leitura e a pesquisa. Vale procurar no seu downloader preferido todos os discos e nomes citados. E vale apreciar a deliciosa forma com que ele escreve e conta suas descobertas musicais.

Esses são “Os Discos da Vida” de Alex Antunes.

ALEX ANTUNES

Escolher dez discos da minha vida não é um retrato exatamente preciso da minha musicalidade, porque alguns gêneros que mexem comigo, principalmente os ligados à black music, são mais de hits do que de álbuns. Por exemplo, certamente eu colocaria “Shaft”, do Isaac Hayes, como uma das minhas dez músicas prediletas, mas nunca o álbum. Mesmo caso de “Unfinished Sympathy”, do Massive Attack, pra dar um exemplo bem mais recente. Eu posso dizer que sou um cara sortudo, porque na época da minha formação musical o rádio e mesmo a televisão (com os festivais, certamente, mas também com coisas como o seriado dos Monkees) tocavam muitas coisas – e coisas da melhor época da música popular mundial. Vi e ouvi, com atenção e um tanto intrigado, “Alegria, Alegria”, aos sete anos de idade. Posso dizer que Walter Franco, Macalé, Mautner e Sérgio Sampaio formaram não apenas meu gosto musical, mas minha personalidade, com suas performances experimentais e debochadas nos festivais da TV. Dito isso, vamos lá.

Hermeto Pascoal – “A Música Livre de Hermeto Paschoal” (1973)
Num certo dia de 73, fui à loja pra comprar meu primeiro álbum. Só tinha dinheiro pra levar um, e tive que escolher entre os dois que eu queria: o primeiro de Hermeto (que na capa desse disco ainda era “Paschoal”) e o “Krig-Há Bandolo”, do Raul Seixas. Músicas como “Bebê”, do Hermeto; e “Janela de Ouro”, de Egberto Gismonti; assim como “Bennie And The Jets”, do Elton John; “Shaft”, do Isaac Hayes; “Don’t Mess With Mr. T”, do Marvin Gaye; e “Long Ago Tomorrow”, do BJ Thomas; tinham o clima e a dramaticidade de arranjos que chamavam a minha atenção, entre as músicas que tocavam na rádio Eldorado. E Raul Seixas foi introduzido lá em casa por um amigo da família, que era divulgador de gravadora, e deixou lá o compacto de “Ouro de Tolo” (além de dois outros, com “Ama Teu Vizinho Como a Ti Mesmo”, de Sá Rodrix e Guarabyra; e “Você Tem Tempo”, com Betinho, de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues, de quem eu também gostava muito). Na loja, escolhi o disco do Hermeto – e parece que defini um caminho, também, porque jamais comprei disco nenhum do Raul (com todo o respeito), como se essa escolha fosse uma encruzilhada. Nascia ali um adolescente esquisito, que descobriu que o resto do disco era ainda mais estranho que a, errr, “radiofônica” “Bebê”. Pode-se dizer que muito do meu interesse pela música improvisada e de invenção foi desenvolvida por composições hermetianas como “Plin”, “Sereiarei” e “O Gaio da Roseira” (que tem um solo de bateria de Nene, que ainda considero um dos mais legais que ouvi em toda a minha vida), além de louquíssimas descontruções de “Carinhoso” e “Asa Branca” (cuja original, diga-se de passagem, acho um pé no saco). Esse disco permanece entre os melhores da música brasileira. E lembro de minha mãe dizendo “ele só ouve essa música de filme de terror”.

Ouça “O Gaio da Roseira”:

King Crimson – “Islands” (1971)
Foi aí que os deuses do acaso resolveram dar uma forcinha. Meu amigo Paulo Preto estudava na União Cultural Brasil-Estados Unidos, que tinha uma boa discoteca. E onde os álbuns progressivos eram muito disputados, estavam sempre emprestados. Um dia, o Preto deu de cara com o “Islands” do King Crimson, e o levou pra casa – apesar de seu aparelho de som estar quebrado. Resultado: ele o deixou comigo, pois não podia ouvir mesmo. Sozinho no quarto, coloquei a agulha no vinil. E aí minha vida virou no avesso. O cello sinistro que introduz “Formentera Lady”, o absurdo solo de Robert Fripp em “Sailor’s Tale”, a lancinante “The Letters”, a abusadamente sexy “Ladies Of The Road”, com a sua gozadinha harmônica em cima de Beatles, o quarteto de cordas de “Prelude” e a enigmática viagem de “Islands” (letra que Pete Sinfield escreveu inspirado nas trips hippies da ilha de Formentera, no mesmo arquipélado das Baleares de Ibiza, pra onde Robert Wyatt ia, em experiências psicodélicas como as retratadas no filme “More”, aquele da trilha do Pink Floyd), tudo isso me conectou pra sempre com o imaginário da contracultura pesada. Logo em seguida eu ouviria os outros discos do Crimson, e elegeria o radicalmente experimental “Larks Tongues In Aspic” como o meu preferido, mas o caminho foi aberto por “Islands”. Quem conhece “Islands” sabe que o disco acaba (depois de um longo silêncio) com o som de uma orquestra afinando, e uma contagem, à qual não se segue música nenhuma. Posso dizer que a primeira vez que ouvi isso foi a contagem pro primeiro dia do resto da minha vida: a da paixão irrestrita pela música e pela cultura underground.

Ouça “Ladies Of The Road”:

Secos & Molhados – “Secos & Molhados” (1973)
Ainda em 73, tive um sarampo tardio, ficando uns dez ou quinze dias preso em casa. E um amigo (o mesmo Paulo Preto?) me deu, de presente, o disco dos Secos & Molhados, que bombaram rapidamente, num período de poucos meses, até a mais absoluta notoriedade, puxado pelos hits “O Vira” e “Sangue Latino”. A voz andrógina de Ney Matogrosso, as maquiagens pré-Kiss, as letras sexual e politicamente dúbias, inventaram o glitter brazuca e introduziram a contracultura nacional num nível bombástico, exuberante, inesperado, ao mesmo tempo em que a ditadura mergulhava em seu período mais negro. Mas o fato é que, pra além de toda a controvérsia comportamental e todo o hype (que não se chamava hype ainda), o primeiro Secos & Molhados é o mais perfeito álbum pop brasileiro, ultrapassando as obras de Mutantes, Novos Baianos e Raul Seixas, com sua inspiração de ponta a ponta. Músicos em performances e arranjos sensacionais, como o guitarrista John Flavin e Zé Rodrix, e um repertório que não sofre nada com o tempo, fazem desse álbum, na minha vida, um contraponto mais luminoso ao culto denso de Robert Fripp. Naqueles dias de quarentena, ouvi e reouvi Secos & Molhados, que me ensinaram muito sobre o uso da poesia e dos elementos performáticos na música. O outro disco brasileiro que rolava loucamente em casa na mesma época era o “Caetano e Chico – Juntos e Ao Vivo”, um trabalho que, de certa forma, ultrapassa as limitações de um e de outro (apesar das ridículas palmas falsas enxertadas entre as faixas). Outro contemporâneo, o “Lóki?”, do Arnaldo, eu descobri na casa de um colega do colegial, e fiquei siderado.

Ouça “Fala”:

Area – “Crac!” (1975)
Em 75, meu pai estava morando em Portugal, e fui passar um mês em Lisboa, nas férias do fim do ano. Flanando praticamente sozinho pela cidade (o velho estava envolvido até o pescoço com a preparação das importantíssimas eleições presidenciais de 76, as primeiras após a revolução de 74, num clima político bastante conturbado), encontrei minha “alma européia”. Além de King Crimson (eu considerava então Robert Fripp uma espécie de mentor mágico e espiritual), eu ouvia muito progressivo mais criativo (Gentle Giant, Van der Graaf Generator, Stomu Yamashta, Kraftwerk, PFM), mas a descoberta do grupo italiano Area levou as possibilidades sonoras ainda mais longe. Banda bastante experimental, com um pé no prog e outro na fusion (como outras ótimas bandas italianas que eu descobriria depois, como Napoli Centrale e Dedalus), e o “melhor vocalista do progressivo”, o greco-italiano Demetrio Stratos, o grupo era muito politizado e intelectualizado, próximo do PC italiano, com letras cheias de referências históricas, políticas, psicanalíticas etc. Uma curiosidade: eu pintava minhas próprias camisetas com capas de disco, como a clássica “In The Court of Crimson King”, e a primeira vez em que entrei na Baratos Afins, alguns anos depois, usando a minha camiseta do Area, o Luiz Calanca, que eu ainda não conhecia, arregalou o olho e disse “AREA ‘CRAC!'” (ele falava o nome da banda e o do álbum juntos). Eu escolho o Area aqui de certa forma tirando a vaga do “Third”, do Soft Machine, que eu descobri um pouco mais tarde, e que é outra referência absolutamente atemporal nessa mesma praia. Na verdade eu devia colocar era o SM, mas cedi à compulsão de soar (um pouco mais) obscuro.

Ouça “Megalopoli”:

Walter Franco – “Respire Fundo” (1978)
Em 76, abriu perto da minha casa o Shopping Ibirapuera, o segundo de São Paulo, depois do Iguatemi. O bom é que lá, além de lojas especializadas, como o Museu do Disco e a Billborad, onde era possível ouvir os vinis (o Museu tinha até umas cabininhas individuais), o shopping tinha uma grande loja de departamento (não me lembro qual) com uma ótima sessão de discos, igualmente com pick-ups e fones de ouvido, e nenhum vendedor particularmente empenhado em atender ou vigiar. Ouvia e comprava fusion, prog e eletrônica, como o sensacional “Oxygene”, do Jean-Michel Jarre (antes dele bregar), o prog japonês Yoninbaishi (sim, isso saiu aqui – vale dar uma pesquisada no álbum “Golden Picnics”), Passport, Caldera, Joachim Kühn… Também descobri lá alguns nacionais maravilhosos como o “Imyra, Tayra, Ipy”, do Taiguara (que tem o Hermeto e um time sensacional, com Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas, Jacques Morelembaum, Novelli, Zé Eduardo Nazário… Esse foi imediatamente apreendido pela censura – mas tive tempo de comprar um no shopping); o “Águia Não Come Mosca”, do Azymuth; o “Corra o Risco”, da Olivia, com a Barca do Sol; o “Carmo” (com a Wanderléa, e o baixista da Black Rio!); e o “Nó Caipira”, do Egberto. Também comecei a ir bastante a shows, como o do John McLaughlin, com o Egberto, na Portuguesa; o do primeiro disco do Zé Ramalho (outro disco perfeito de ponta a ponta); o São Paulo – Brasil, do César Camargo Mariano. E havia lojas na Paulista e do centro, como a Brenno Rossi, que colocavam às vezes vinis importados em oferta, como a trilha de “Aguirre” do Popol Vuh; o “Third”, do Soft Machine; e o incrível “Brown Rice”, do Don Cherry. Mas um disco que me marcou muito no período da minha entrada na faculdade foi o “Respire Fundo”, do Walter Franco. Na verdade foi desse disco o repertório do show da semana dos calouros, na FAU (em cujo cineclube passou o filme “Aguirre”, do Herzog, cuja trilha já havia me impressionado muito). “Respire Fundo” talvez nem seja meu Walter Franco oficialmente predileto (que é o mais roqueiro “Revolver”, que eu ouvi depois, fora de ordem). Mas esse verdadeiro who’s who da música brasileira (com João Donato, Wagner Tiso, Zé Ramalho, Sivuca e gente dos Mutantes, do Vímana, do Terço e da Cor do Som, entre muitos outros), “Respire Fundo”, com sua espiritualidade escancarada, me acompanharia pela vida. Me lembro até de um trabalho de ayahuasca em que eu tive a oportunidade de tocar a faixa-título, pra alegria do Minho K e de outros amigos meus que estavam presentes (naquela e em outras dimensões). Recomendo a audição desse disco contra qualquer crise de ansiedade. “Respire Fundo”, “Coração Tranquilo”, “Lindo Blue” e “Até Breve”, além do hino indiano “Govinda” e do “Fado do Destino” são, sem hipocrisia nem cinismo, um alívio e um caminho pra tranquilidade e pra beleza.

Ouça “Respire Fundo”:

Brian Eno – “Another Green World” (1975)
A minha entrada na USP, em 78, e o encontro com interlocutores como Thomas Pappon e Minho K (meus futuros colegas na Bizz), permitiram que eu me aprofundasse na música não mais apenas como uma questão de gosto, mas de discussão estética. É dessa época a descoberta das teorias e experiências de músicos-pensadores como Brian Eno e John Cale. Há um par de discos de Eno, “Another Green World” (75) e “Before And After Science” (77), que reúne praticamente todo mundo que importava: Cale, Fripp, Fred Frith, Jaki Liebzeit do Can, Moebius e Roedelius do Cluster, Percy Jones e Phil Collins do Brand X, Robert Wyatt, Phil Manzanera do Roxy Music, Bill McCormick do 801 e do Random Hold, entre vários outros. Entre climas intrigantes, experimentais e plácidos, Eno (que ao lado de Fripp também participou da trilogia berlinense de Bowie) avança no novo território da “cultura de produtor” (pra além das culturas de compositor e de arranjador), da música de timbres. Foi Eno que fez a ponte entre as invenções mais características do início dos anos 70 (com o Roxy Music, Fripp, o pessoal do krautrock, depois com Jon Hassell) e as do fim da década, quando produziu o “No New York”, os álbuns de estréia do Devo e do Ultravox! e se associou aos Talking Heads em sua fase mais experimental. Foram também dois discos aos quais as teorias de Eno estão associadas – o “My Life In The Bush Of Ghosts” (81, de Eno com David Byrne, o primeiro disco a ser construído em cima de samples e grooves), e “God Save The Queen/Under Heavy Manners” (80), de Robert Fripp, com o uso dos “frippertronics” (técnica analógica de loops desenvolvida com Eno, usando dois gravadores Revox de fita) que deram a base estética da minha banda, Akira S & as Garotas Que Erraram, que fundei com o baixista Akira, em 84 (e teríamos a honra de gravar com Holger Czukay, do Can, e tocar com Arto Lindsay, do DNA, Ambitious lovers, Golden Palominos e Lounge Lizards). Mas escolho o “Another Green World”, particularmente, como o mais misterioso e climático dos discos de Eno nessa fase. É o álbum em que Eno abandona o modo mais glitter de seus dois primeiros – “Here Comes The Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (by Strategy)” –, herdeiros diretos de sua experiência com o Roxy Music, e começa a trabalhar uma estética downtempo, ambient e de espacialidades eletrônicas que só seriam talvez melhor compreendidas e exploradas na década de 90, com as tecnologias digitais de gravação.

Ouça “St. Elmo’s Fire”:

Tuxedomoon – “Desire” (1981)
E chegamos ao pós-punk e à estética dos anos 80. Na verdade, só essa fase mereceria sua lista de 10 discos prediletos. MX-80, com “Hard Attack” (77) ou “Crowd Control” (81); PIL, com “Public Image” (78) ou “Metal Box” (79); Stranglers, com “Black And White” (78), “La Folie” (81) ou “Feline” (83); XTC, com “Go 2” (78) ou “Drums & Wires” (79); Talking Heads, com “Fear Of Music” (79) ou “Remain In Light” (80); This Heat, com “This Heat” (78); Japan, com “Quiet Life” (79), “Gentlemen Take Polaroids” (80) ou “Tin Drum” (81); Gang Of Four, com “Entertaiment!” (79); Pop Group, com “Y” (79); James Chance e os Contortions, com “Buy” (79); Yellow Magic Orchestra, com “Solid State Survivor” (79), “Technodelic” ou “BGM” (81); Bill Nelson, com “Sound On Sound” (79), “Quit Dreaming And Get On The Bean” (81), “The Love That Whirls” (82) ou “Chimera” (83); Simple Minds, com “Empires And Dance” (80), “Sons And Fascination” ou “Sister Feeling Call” (81); Chrome, com “Red Exposure” (80), “Blood On The Moon” (81) ou “The Chronicles” (82); The Sound com “Jeopardy” (80) ou “From The Lions Mouth” (81); Clock DVA, com “Thirst” (80) ou “Advantage” (82); The Passage, com “Pindrop” (80), “For All And None” (81) ou “Enflame” (83); Cabaret Voltaire com “Red Mecca” (81), “Hai!” (82) ou “The Crackdown” (83); Abwärts com “Der Westen Ist Einsam” (82); Bunnydrums, com “P.K.D.” (83) ou “Holy Moly” (84); 23 Skidoo, com “Urban Gamelan” (84); Tackhead, com “Mind At The End Of Tether” (85) poderiam representar nela. E o “Avalon” (82), do Roxy Music, claro, o LP ao qual eu devo mais transas. Mas vou escolher o mais intrigante de todos os discos da época. Minhas lembranças dos anos 80 são associadas às lojas em que comprei os vinis, principalmente a Baratos Afins (Calanca adquiriu um lote de pós-punk em que pinçamos o Gang Of Four, Stranglers, Simple Minds, MX-80 e Pop Group) e a Wop Bop (onde comprei Chrome, Cabaret Voltaire, Contortions). Mas foi numa pequena loja de Pinheiros, a New Images, que dei com o disco que me causou a sensação mais forte talvez desde aquele “Islands”, do King Crimson. Foi “Desire”, do Tuxedomoon, banda de São Francisco de natureza bastante experimental e performática. Uma estranha combinação de bateria eletrônica com violino, baixo, órgão e sax, timbres low tech com grande destreza instrumental (particularmente do violinista, Blaine Reininger, e do organista/saxofonista Steven Brown), além de um baixista “duro” (Peter Principle) e um vocalista intrigantemente teatral e afetado (Winston Tong, o Bryan Ferry do bairro chinês). A memorável sequência inicial de “Desire” (“East/ Jinx/ …/ Music #1”) precipita o ouvinte num universo onde melodismos derramados, minimalismos synth-pop, atmosfera gay-punk mostram porque São Francisco é um paraíso alternativo, onde beatniks, hippies, gays deixaram todos suas marcas num amálgama cultural fabuloso. “Desire” foi gravado na Inglaterra, após a retirada da banda pra Europa (assim como Damon Edge refundou o Chrome na França), após o assassinato de Harvey Milk, que abalou a cena alternativa da cidade. Tuxedomoon passou por Londres e Amsterdã antes de se estabelecer em Bruxelas. Mal sabia eu, quando via o espetáculo de teatro com música ao vivo dos belgas do Plan K no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, que seria graças à prolongada turnê do grupo no Brasil que suas instalações seriam cedidas temporariamente ao Tuxedomoon na Bélgica, permitindo a reorganização da banda americana no país… Obrigado, Ruth Escobar, pelos favores musicais (e por falar em Ruth Escobar aqui vai mais uma curiosidade: eu e o Minho K tocamos com a filha dela, Anna Ruth, no grupo No. 2, que ensaiava na garagem da casa da família nas Perdizes; e houve um certo ensaio que tivemos que interromper porque estávamos atrapalhando uma reunião com Tancredo Neves).

Ouça: “East/Jinx…/Music #1”:

Gil Scott-Heron – “The Revolution Will Not Be Televised” (1974)
Em 88, aconteceu uma coisa inexplicável – e maravilhosa. A BMG brasileira lançou uma compilação da fase inicial de Gil Scott-Heron no selo Flying Dutchman (70-72). Hoje reverenciado como um dos precursores do rap (ao lado dos Last Poets), e nascido em Chicago, Scott-Heron gravou seu álbum de estréia, “Small Talk At 125th And Lennox”, basicamente poesia e percussão ao vivo, em Nova York, em 70. Mas seus dois álbuns seguintes, “Pieces Of A Man (71) e “Free Will” (72) revelaram um músico-poeta maduro, na confluência do jazz, do blues e do soul-funk, com um estilo vocal declamatório e contundente que viria a influenciar e forjar a música negra nas próximas décadas. Acontece que, ao longo da década de 80, a reputação que Scott-Heron havia construído até 82, quando parou de gravar, já havia se desvanecido. Uma participação no disco anti-apartheid “Sun City” (86, com Miles Davis, Ringo Starr, Peter Gabriel e Bono, entre outros), mostrou que já não se sabia quem era aquele cara com aquela voz fantástica. Com o lançamento tardio de “The Revolution…” no Brasil – ainda por cima com uma bela ilustração de capa pintada por Carmine Coppola, também músico e pai do cineasta –, os ouvidos se renderam imediatamente a pérolas como “Lady Day And John Coltrane”, “Pieces Of A Man” e “Home Is Where The Hatred Is”, sem falar na sua peça de resistência mais clássica, a faixa-título. Acontece que até nós, os críticos, não tínhamos ouvido (ou ouvido falar) naquilo. Foi uma das mais chocantes sensações da minha vida, de ver que eu desconhecia algo absolutamente essencial. Também foi um dos discos que galgaram mais rapidamente à Discoteca Básica da Bizz, do desconhecimento ao reconhecimento absolutos. Anos depois, a editora Conrad lançou no Brasil o romance de Scott-Heron, “O Abutre”. Outra possibilidade seria de lembrar aqui um disco dos Last Poets, de quem se fala ainda menos (apesar de se samplear bastante). Dos Poets saiu Lightnin’ Rod (AKA Alafia Pudim, AKA Jalal Mansur Nuriddin), que lançou o disco precursor do gangsta rap (“Hustlers Convention”, de 73, com Tina Turner, Bernard Purdie, Billy Preston e Kool And The Gang), contemporâneo da “blaxploitation”, e o single “Doriella Du Fontaine”, com Jimi Hendrix e Buddy Miles se desdobrando na guitarra, baixo, órgão e bateria – essa poderia estar fácil numa lista de 10 músicas da minha vida.

Capa Original

Capa do relançamento (1988)

Ouça “The Revolution Will Not Be Televised”:

Miles Davis – “Get Up With It!” (1974)
O primeiro disco de Miles Davis que comprei (num dos balcões de importados em oferta na Brenno Rossi) foi a trilha do filme “Jack Johnson” (lançado em 71, gravado em 70). Sem querer, fui ao ponto nevrálgico da obra do homem. Depois da ensaiada eletrificação de sua música em “In A Silent Way” (69) e “Biches Brew” (70), é em “Tribute To Jack Johnson” que Miles se aproxima decididamente do rock, com a ajuda de John McLaughlin, Michael Henderson e Billy Cobham. Eu já ouvia todos os filhotes de Miles (Mahavishnu Orchestra, Weather Report, Return To Forever, sem falar de outros velhos malucos do jazz, como Don Cherry e Ornette Coleman), mas sem entender exatamente como se tinha dado essa passagem, porque a discografia e a literatura sobre o trompetista eram escassas e confusas no Brasil. Foi quando comecei a viajar pra Europa, já como editor da Bizz, que comecei a ter acesso a esse material. O próprio Miles já tinha reaparecido, depois de sua abdução pela heroína (75-81), e voltado a lançar discos. É por isso que escolhi “Get Up With It!”, e não “…Jack Jonhson”, ou “On The Corner” (72), seu disco mais radical, mas que só consegui comprar mais tarde, em CD. Quando dei de cara com uma cópia de “Get Up…” em Bruxelas, em 88, já sem muita grana, comprei-a com um cartão de crédito não desbloqueado pra uso internacional (com um boleto de preenchimento manual, obviamente). Recebi a conta no Brasil com uma bela multa. Mas a sensação de botar as mãos naquele magnífico vinil duplo, com sua capa em que Miles usa um daqueles gigantescos óculos escuros, foi incomparável, quase mística. Quanto ao repertório, é um disco que o produtor Teo Macero montou com faixas de diferentes sessões, com diferentes músicos, de 70 a 74 (as edições e montagens de Macero são um elemento adicional na complexa, pra não dizer confusa, discografia de Miles – e só vieram a ser destrinchadas com clareza na última década). Mas é um álbum bastante equilibrado, sem as arestas excessivas de “On The Corner”, as digressões meio fantasmagórias de seus discos gravados ao vivo do período 73-75, ou coleções mais desconjuntadas, como “Live-Evil” (71) ou “Big Fun” (74). Em “Get Up…”, “He Loved Him Madly”, “Rated X”, “Calypso Frelimo”, “Red China Blues” e “Billy Preston”, entre outras faixas, fazem uma coleção na medida: politizada em seu suíngue, firme em sua fluência, um discurso pantera-negra-sem-palavras. O único disco que poderia ombrear com um de Miles nesta lista seria algum de seu pupilo Herbie Hancock – ou “Sextant” (73) ou “Headhunters” (73), em que o tecladista completou sua trajetória do jazz ao funk eletrônico, juntando codinomes africanos com uma obsessão com pedais de efeito e uma profusão de teclados elétricos, ou mesmo “Future Shock” (83), em que Hancock se uniu à trupe do Material, com Bill Laswell à frente, para redefinir as relações entre jazz e cultura de rua (eletrofunk, hip hop). Mas nada disso existiria sem Miles.

Ouça “Rated X”:

Serge Gainsbourgh – “Historie De Melody Nelson” (1971)
Ao lado de Gil Scott-Heron, e talvez dos Silver Apples, Serge Gainsbourg foi o meu (nosso, se se considerar a equipe da Bizz) maior reconhecimento tardio. Até o início da década de 80, eu só conhecia – e não haveria como não conhecer – o escandaloso hit “Je T’Aime (Moi Non Plus)”. Acontece que, numa visita à Wop Bop, dei de cara, em 84, com uma cópia do álbum “Love On The Beat”. Era uma cópia de crítico (francês), ainda com o release e a foto de divulgação dentro. Uma olhada na ficha me mostrou que, além de Gainsbourg maquiado como travesti na capa, havia convidados inusitados: o tecladista de origem prog Larry Fast, na época tocando com Peter Gabriel, e os irmão Simms, vocalistas com David Bowie. Foi esse disco fantástico, que começa com o sadomasô-eletro que lhe dá titulo, me levou a pesquisar o que Gainsbourg teria feito entre 69 (“Je T’Aime”) e 84. E aí foi surpresa atrás de surpresa, inclusive com as gravações anteriores, de 62 a 69. Foram discos que eu comprei na França e na Bélgica, porque pouco se falava ainda de Gainsbourg no resto do mundo. Cheguei a divulgar um tributo brasileiro a Gainsbourg no início dos anos 90 (saiu matéria de Antonio Carlos Miguel n’O Globo): os 3 Hombres já haviam ensaiado sua faixa (“69 Anée Erotique”) e o próprio Lulu Santos já tinha me dado sinal verde em uma conversa – mas esse sonho de homenagear Gainsbourg só se concretizou quase duas décadas mais tarde, ao lado de Edgard Scandurra e Les Provocateurs. Inquieto, galante, Gainsbourg atingiu seu ápice após “Je T’Aime”, que ele gravou com Jane Birkin (na verdade regravou, porque a versão original, com Brigitte Bardot, permaneceu vetada por ela até 86). Em “Histoire De Melody Nelson”, com Birkin na capa (e em alguns gemidos que ele registrou com um gravador embaixo da cama do casal), o poeta maldito da música colaborou com o compositor e arranjador Jean-Claude Vannier numa suíte conceitual pra power trio, orquestra, coro e seus roufenhos vocais semifalados, que contam uma estranha história entre uma lolita e um magnata. Além do grandioso tema principal, a belíssima “L’Hotel Particulier” e o frenético rock instrumental “En Melody” constituem um repertório que só não foi diretamente reconhecido como um dos maiores discos pop de todos os tempos porque foi gravado em francês, e não em inglês. Mas sempre é tempo de corrigir isso. Fiz minha parte: quando a Bizz fechou, em 2007, uma das últimas Discotecas Básicas foi a de “Histoire De Melody Nelson”, assinada por mim.

Ouça “L’Hotel Particulier”:

Na próxima edição de “Os Discos da Vida”, Badhoneys.

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Repentina”.

Leia mais:

Comentários

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12 comentários

  1. engraçado q lembro de ter comprado de terceiros alguns discos q foram do alex. primeiro o vinil do let’s play domination do world domination enterprises, posteriormente o cd. e a edição dupla do cop/ young god/ greed / holy money, dos swans. todos discos preferidos q moldaram muito do q fui gostar e um pouco do q viria a tocar depois. então, devo agradecer não só pelas dicas via imprensa, mas tb pelos discos de q ele desencanou terem sido bastante importantes na minha vida. muito obrigado!

  2. Excelentes ! Parabéns Alex !
    Another Green World é um album que movimentou totalmente minhas criações….

  3. movimentemos mais algumas 🙂 (o sergio pinto acaba de me lembrar que bem cabia o cassiber nessa lista. cabia sim)

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